Era uma vez uma redacção onde o tempo voltava para trás. Teimosa, mais do que travar a entrada do futuro, ia limpando do presente os polimentos da modernidade. Os jornalistas, como antigamente, não tinham carros. Ia-se a pé, corria-se, suava-se pela notícia pelas ruas do burgo antigo. Se não se podia ir, esperava-se que a notícia viesse bater à porta – afinal, trata-se de um regresso a um passado de glória onde o título impunha vénias e altas tiragens. Da província, chegavam as crónicas. Para lá das muralhas da cidade, ia a Lusa. Os jornalistas, como antigamente, não tinham fotocopiadora: copiam as coisas à mão, alguns ficaram gratos pela caligrafia que julgavam perdida. Já estivera mais longe de se ver livre do fax, esse parasita da iniciativa, que trazia a agenda mole e passiva, diante de uma infindável língua de informações. Já conseguia fazê-lo parar, às vezes, sem aviso prévio. O economato nunca chegou a entrar na redacção, mas mesmo aí conseguira algumas vitórias: não havia qualquer tipo de material escrevente, qualquer folha – o jornalismo é uma missão, afinal! Mas a grande, grande batalha ganha foi a que travou contra o digital. Dessa vez, foi paciente: esperou que eles se habituassem. Deixou-os ganhar os vícios dos acomodados, ganharem o costume de chegar e abrir na janela dos computadores (pragas que, infelizmente, ainda não arranjara maneira de extinguir) os jornais dos outros, as notícias de outros mundos, as fontes que tiravam do ecrã sem um telefonema, uma corridinha, uma pinga de suor, uma noite ao relento. Deixou-os entrar na terrível adicção do correio electrónico, nos chats, weblogs, messengers, downlowds, pdfs, jpgs e gifs. Deixou-os sonhar com um site onde toda a gente pudesse ler o seu jornal. Deu-lhes a droga. E depois tirou-lha sem metadona. E riu-se dos cegos viciados, esgravatando com o rato num universo estéril, para sempre fechado para eles, um buraco negro, a porta do mundo inteiro fechada por um servidor mudo. A desculpa: “problemas com o fornecedor de acesso”. Quase um mês de privação dava-lhes um ar simiesco, atarantado. Começaria em breve a crueldade, uma espécie de “Ensaio sobre a cegueira” à escala de uma redacção... E aí, quando os homens e mulheres guedelhudos e babados, de unhas tornadas enormes e curvas pela falta de teclas, atirassem os macintoshes pelas janelas num último assomo de loucura, faria entrar de novo as máquinas de escrever desdentadas e seria finalmente feliz. (Introdução de um romance que ando a escrever. Serve como expiação do desespero e como explicação da minha ausência recente. Qualquer coincidência com a ficção, é pura realidade)
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