Foi ou não a cobertura jornalística de Timor-Leste um caso típico do chamado jornalismo de causas? - A perspectiva de Adelino Gomes "Olhando (...) para o processo no seu conjunto, concluo (...) que os jornalistas, como lhes competia, abriram uma janela por onde o mundo espreitou. Para honra da profissão, o referendo ratificou o seu trabalho ao longo dos anos, E o mundo deixou de ser o cenário para menos uma injustiça." Na intervenção que fez anteontem, na sessão de apresentação do livro de Rui Marques sobre o agendamento de Timor-Leste na imprensa portuguesa, o jornalista Adelino Gomes desenvolveu uma leitura sobre o papel do jornalismo e dos jornalistas que, vinda de quem vem, constitui um documento que merece reflexão e estudo. O jornalista do "Público" começou por manifestar a sua satisfação "com o trabalho em si e o seu autor". "Sabendo Rui Marques que todas as coisas têm o seu tempo, soube viver estes capítulos da sua vida e da vida dos homens do seu tempo em conformidade com a hora que cada um deles representou - tempo para plantar e tempo para colher o que se plantou; tempo para espalhar pedras e tempo para as juntar" - salientou Adelino Gomes. Transcrevemos, de seguida, o texto que lhe serviu de apoio na análise da obra de Rui Marques: "Esta tese representou/este livro representa o tempo de juntar as pedras, antes espalhadas, e lê-las. Agora a uma luz e segundo uma gramática diferentes, num desafio simultaneamente intelectual e científico, como o autor refere na introdução. Do sucesso por ele alcançado falou, com a autoridade que eu não tenho, o professor Diogo Pires Aurélio [DPA]. Por mim quereria, ainda que em poucas palavras, tecer algumas considerações em torno da parte em que esta tese vem ao encontro, questionando-o, do comportamento do jornalismo e dos jornalistas, ao longo dos 24 anos que durou a ocupação indonésia e a resistência timorense. Fá-lo-ei em poucas palavras, porque esse constitui o ângulo que escolhi desenvolver no prefácio Mas não resisto, até porque quem leia a Nota do Orientador (também ele antigo jornalista) encontrará uma quiçá-diferente-ainda-que-não-incompatível sensibilidade em relação ao problema. O qual é o seguinte: Foi ou não as cobertura jornalística de TL pela imprensa portuguesa um caso típico do chamado jornalismo de causas? Escreve DPA que "até prova em contrário o jornalismo em prol de uma causa permanece sob suspeita. Porque uma coisa é confirmar a justeza de uma causa que o jornalista ou o órgão de informação apoiem, outra, bem distinta, é confirmar a autenticidade daquilo que é divulgado". E considera que este caso coloca a discussão "ainda um passo mais adiante, o qual se traduz em saber se, com base na veracidade dos factos e na justeza da causa, a narrativa poderia ter sido mais contida e menos veemente, do que, algumas vezes, foi". Conclui dizendo que a verdade dos factos não é garantia suficiente de boa informação. É preciso atender também à sua selecção, à retórica, ao tom e ao contexto em que eles são apresentados. Para surpresa eventual de muitos, estou de acordo com tudo o que acabo de citar. E em particular com a primeira asserção, que nos diz dever o jornalismo em prol de uma causa permanecer sob suspeita, até prova em contrário. E com a crítica de que a narrativa dos factos ocorridos em Timor, em especial naquele ano de 1999, deveria ter sido mais contida e menos veemente. Onde está então o meu desacordo? No ângulo de análise que eu privilegio, nos múltiplos dados que esta tese nos fornece e que aí estão agora para fruição de cada leitor. Assinalo-o no prefácio e repito-o aqui, agora: Declarações de responsáveis da resistência associando os repórteres à vitória independentista incomodam os defensores da imparcialidade do jornalista. Mas podia ter sido de outra maneira, naquele caso concreto? "Provavelmente não", responde Rui Marques, dizendo que não é possível pedir a um jornalista que perante a chacina de inocentes civis ignore a injustiça e não se solidarize com as vítimas. O problema está no respeito pela fronteira "entre a denúncia fundamentada e rigorosa e a tentação da difusão de rumores favoráveis à causa", que os transforma em propagandistas. Pessoalmente, vou um pouco mais longe, e para isso basta-me o recurso ao próprio trabalho do autor que nos demonstra, em três exemplos, entre outros, a procura de equilíbrio informativo procurado pela Lusa (aqui escolhida como referencial mediático português). Se é verdade (e poderia ser de outra forma?) que Xanana, Horta e Belo surgem muito destacados nos gráficos referentes à frequência das referências a nomes de protagonistas timorenses durante os 10 anos analisados, não deixa de ser assinalável a presença, no mesmo quadro, de figuras como Lopes da Cruz (6º lugar), Mário Carrascalão (7º, tendo sido governador e posteriormente embaixador da Indonésia na Roménia durante aquele período), Eurico Guterres (à frente de Basílio do Nascimento) e Abílio Osório Soares. Os dois exemplos seguintes mostram-nos que se registou, por um lado, um equilíbrio de referências entre os campos independência vs. autonomia/integração (1867 contra 1725); e, por outro, que além das figuras canónicas - Gama [por duas vezes MN], Barroso, [MNE], Guterres [primeiro-ministro] e Sampaio [PR] ? , o nome de Manuel Macedo [o empresário portuense pró-indonésio] teve mais referências do que os dois activistas históricos da causa, Barbedo de Magalhães e Luísa Teotónio Pereira, e que Galvão de Mel [ presidente de uma associação de amizade com a Indonésia], foi mais vezes referido do que Luísa Teotónio Pereira. Não sei se a cobertura de muitos ou mesmo de algum conflito do nosso tempo, sujeita a uma mesma barragem de análise metodológica, daria resultados semelhantes. Timor, ao contrário da ideia que ficou das semanas que antecederam e se seguiram ao referendo de Agosto de 1999, foi, no plano jornalístico e durante pelo menos uma década e meia (entre 1975 e o massacre de Santa Cruz), um deserto noticioso. Por razões, muitas delas perfeitamente aceitáveis, devido à impossibilidade prática de confirmar as alegações da guerrilha, as redacções, as editorias e as direcções levaram anos a aceitar a noticiabilidade do que lá acontecia e que era ? sabemo-lo hoje sem margem de dúvidas ? a luta dramática de um povo pela sobrevivência. Falei em redacções querendo dessa forma dizer (nisso me distancio da tese conspirativa de Noam Chomsky) que não foram apenas os primeiros-ministros e eurocratas que Durão Barroso e Guterres encontravam enfadados por esses fóruns internacionais fora; ou que os patrões de imprensa ou os directores contribuíram sozinhos para esse muro de silêncio que durante anos se levantou em torno do caso. Eu próprio trabalhei numa redacção em que os dois ou três jornalistas que sobre o tema foram escrevendo eram chamados, pelos outros de ?mauberes?. Com o mesmo desprezo com que durante anos ser ?maubere? foi visto em Timor pela classe mais possidente. Um aqui, outro ali, durante anos contavam-se pelos dedos das mãos os media e os jornalistas que tratavam regularmente do tema em Portugal. Talvez pelos dedos de uma só mão até ao massacre de 12 de Novembro, arriscaria: Mário Robalo no Expresso; Fernando Sousa no Tempo e depois no Público; Joaquim Trigo de Negreiros, também no Público; Manuel Acácio na TSF. Acrescentemos-lhe o Pedro Sousa Pereira, o Rui Araújo, a Rádio Press, o Diário de Notícias, a Rádio Renascença, e se calhar esgotámos o universo desse período. Quando Jacarta aceitou o princípio do referendo, as redacções foram apanhadas de surpresa - o que não admira, pois o mesmo aconteceu com a diplomacia portuguesa e com os próprios dirigentes timorenses. Ao longo dos meses que se seguiram, escreveram-se sobre Timor centenas de peças - reportagens, crónicas, entrevistas, editorais - e passaram por Díli dezenas e dezenas de repórteres. A maior parte dos quais com um grau muito limitado de conhecimento do dossier. Timor e os timorenses tornaram-se, de um mês para o outro, a causa mais querida e mais transversal que os portugueses conheceram desde o 1974. Causa que, de tão consensual se tornou, em certo momento, de certo modo, algo totalitária. (Lembro-me do embaraço ao ser apanhado no meio de tráfego e não parar naqueles três minutos de silêncio um dia, às três da tarde; da dificuldade em responder a alguém - não jornalista, felizmente - que, incrédulo, me perguntou certo manhã na redacção como é que eu não ia vestido de branco, como toda a gente estava a fazer no país; e, por fim, de a minha mulher me contar, inocentemente, a história de uma manifestação a que tinha ido com uma amiga a Madrid e que acabara com toda a gente, incluindo o então embaixador português a pular sempre que a multidão gritava "quem não salta é indonésio" (e eu a recordar um banquete oficial na Ajuda em que o mesmo diplomata escarneceu toda a noite da ideia "absurda" da independência para Timor que alguns diplomatas e jornalistas andavam a defender). Estão denunciados e estudados academicamente casos em que jornais e jornalistas se deixaram enredar (às vezes atemorizar) pela teia de cumplicidades e pela torrente de simpatia ou de ódio que se criam em certos momentos históricos em volta de um acontecimento e de certas personagens-chave que o simbolizam. Penso que - como em Timisoara, para dar apenas um exemplo - isso aconteceu também em Timor e ninguém me ouvirá a dizer que isso esteve certo. Olhando, porém, para o processo no seu conjunto, concluo, como escrevi no prefácio, que os jornalistas, como lhes competia, abriram uma janela por onde o mundo espreitou. Para honra da profissão, o referendo ratificou o seu trabalho ao longo dos anos, E o mundo deixou de ser o cenário para menos uma injustiça?. Além dos muitos outros méritos no plano académico, já assinalados por Diogo Pires Aurélio, Rui Marques ajudou-nos, com este trabalho, a ver claramente visto aquilo que era apenas uma intuição. Por isso, enquanto cidadão, jornalista e sobretudo enquanto repórter, lhe agradeço também".
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